— Profissão?
— Psicóloga.
— Quantas gestações?
— Duas.
— Cesárias?
Porque meu ginecologista estava refazendo a minha ficha se já era paciente dele há quase dois anos? Vai ver ele perdeu e precisa dos dados novamente.
— Isso.
— Tem relação sexual com frequência?
— Sim.
— Sempre com a mesma pessoa?
Parei por um momento e pensei: será que é a hora de contar que sou swinger? Talvez seja, acho importante que o médico que trata do meu sistema reprodutivo saiba que sou muito ativa. Enquanto eu pensava na resposta, ele completou com um sorriso leve no rosto, criando um ambiente seguro:
— Não tem problema, pode falar.
— Não, eu sou swinger.
— Quantas vezes você transa por semana?
— Sei lá, 3 ou 4.
— Com quantas pessoas ao mesmo tempo?
— 3 ou 4, mas daí é uma vez por mês, talvez.
— Você tem facebook?
— Tenho. Tenho um blog também.
— Ah, que legal!
O doutor abriu o blog no celular, passou os olhos rapidamente, desligou o celular e finalizou a consulta. Já havia passado pelo exame de toque – aquele na maca com as pernas abertas – e essa sequência de perguntas foi a parte final. Ele se levantou da mesa, eu levantei da cadeira, e antes de pegar a minha bolsa que estava na cadeira ao lado, o médico me agarrou com uma mão no pescoço, tipo chave de braço, e outra na cintura, me arrastando para trás de uma parede do consultório.
Meio enforcada, senti que ele enfiou a mão por dentro da minha calça, enfiando os dedos na minha vagina.
— Você gosta, né? É tão molhada… Eu vejo que você fica toda molhada quando vai fazer exame…
Eu não tive reação. Foi tão inesperado, estava tão despreparada para ser atacada que não conseguia me mexer. Então eu tive a ideia de incorporar a “Marina” e comecei a fingir que estava gostando. Dei uma rebolada e fui falando coisas pra ele do tipo “gosto… mas agora não, tenho compromisso, já estou atrasada...” e meio que prometi voltar outro dia com mais tempo.
Ele me largou, eu peguei minhas coisas e saí tão rápido dali que nem consigo me lembrar se dei tchau ou só fui fugindo mesmo. Não contei pra ninguém. Tive medo de que ele me expusesse nas redes, eu ainda não estava pronta pra assumir nada. Só consegui contar para o Marcio um ano depois. Tive medo que o Marcio fizesse alguma besteira com o médico. A primeira vez que falei pra alguém além do Marcio sobre o que aconteceu foi ano passado, e de novo esse ano numa live. Isso ocorreu comigo em 2013.
Caso Mari Ferrer
Porque só agora estou escrevendo um post? Porque o caso da Mariana Ferrer mexeu demais comigo. Terça-feira, quando li as matérias, me deu uma dor tão grande que eu não consegui ficar quieta. Postei minha revolta no instagram, ainda sem saber porque estava revoltada. No fim da noite, quando vi o vídeo da Talita Moraes contando dos abusos que sofreu, eu mandei uma mensagem pra ela. Na primeira palavra eu comecei a chorar, e foi então que eu percebi a razão do meu incômodo: eu fui abusada. E a sensação de invasão ainda é tão latente quanto há 7 anos.
Ainda tem gente que vai lá na minha postagem pra dizer que eu valido comportamentos agressivos com o meu discurso de liberdade sexual (oi? Pena que a pessoa apagou o comentário…). E outro que fez questão de comentar que “não havia provas, senhora”, aprovando o desfecho do caso da Mari.
Uma das perguntas que Marcio me fez quando eu contei pra ele o que aconteceu comigo – e acredito que você esteja com essa dúvida também – é porque eu não denunciei o médico. Na época eu disse que era porque ele poderia me expôr como swinger, e eu, sinceramente pensei em fazer a denúncia agora. Revi tudo o que aconteceu naquele dia e concluí o óbvio: eu não tenho provas.
Cultura Brasileira
Nem eu nem nenhuma das mulheres que estão postando suas histórias de abuso nas redes, temos como provar que fomos abusadas. Porque eu nunca vi um estupro a céu aberto, com flashes de fotógrafos ou palco iluminado. Não, meus caros, o estupro acontece onde ninguém pode ver, onde ninguém pode ouvir, onde ninguém pode provar. Pior: pegariam os contos do blog, as fotos do sexlog, do instagram e diriam “viu? Ela é uma vagabunda! Tá chorando que foi estuprada porque?” em nome da retórica, do profissionalismo, do “é assim mesmo que se faz num julgamento”.
Esse monte de mulheres tomando as dores da Mari tem uma explicação bem simples: todas passamos por algum tipo de abuso sexual na vida. E desde o tempo da Ângela Diniz ainda somos julgadas por isso. Ainda transformam as vítimas em rés, seja por falta de provas, seja porque somos sexualmente livres, seja porque “é assim que se faz em um julgamento” (cultura do estupro que fala, né?). O caso Mari Ferrer revoltou as mulheres do país porque jogou na nossa cara a verdade que a gente não quer ver: nunca teremos justiça.
Quem é que vai acreditar na Mari? Quem vai acreditar na Marina e na Talita? Quantas Maris, Marinas e Talitas você conhece? E eu nem consigo terminar o post porque as nossas histórias, como a de tantas outras mulheres, não tem fim. Ou tem, e eu não quero acreditar que o final é aceita que dói menos?